Apresentação sobre o poema "Fernão de Magalhães" do livro "Mensagens" de Fernando Pessoa, por Pedro Afonso

Fernão de Magalhães Poema

Analise detalhada do poema

Fernão de Magalhães - Mensagem

FERNÃO DE MAGALHÃES

No vale clareia uma fogueira.

Uma dança sacode a terra inteira.

E sombras disformes e descompostas

Em clarões negros do vale vão

Subitamente pelas encostas,

Indo perder-se na escuridão.

De quem é a dança que a noite aterra?

São os Titãs, os filhos da Terra,

Que dançam da morte do marinheiro

Que quis cingir o materno vulto —

Cingi-lo, dos homens, o primeiro —,

Na praia ao longe por fim sepulto.

white cup with saucer near bok
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Dançam, nem sabem que a alma ousada

Do morto ainda comanda a armada,

Pulso sem corpo ao leme a guiar

As naus no resto do fim do espaço:

Que até ausente soube cercar

A terra inteira com seu abraço.

Violou a Terra. Mas eles não

O sabem, e dançam na solidão;

E sombras disformes e descompostas,

Indo perder-se nos horizontes,

Galgam do vale pelas encostas

Dos mudos montes.

Introdução ao poema

O poema "Fernão de Magalhães", incluído na secção "Mar Português" da obra "Mensagem" (1934), é uma homenagem ao navegador português responsável pela primeira viagem de circum-navegação da Terra. Nele, Fernando Pessoa transcende a mera biografia histórica e constrói uma visão mitopoética de Magalhães como figura heróica, semidivina, que desafia os limites humanos e naturais.

Através de uma linguagem simbólica e referências mitológicas, Pessoa insere Magalhães no imaginário do Sebastianismo e do Quinto Império, temáticas centrais em Mensagem, que propõem um papel espiritual e messiânico para Portugal.

close up photo of body of water
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Estrutura e Temática

O poema divide-se em quatro estrofes, cada uma explorando aspetos diferentes:

1. Ambiente mítico e misterioso

2. A morte heróica e o desafio cósmico

3. A transcendência do feito humano

4. A ignorância das forças primordiais perante a conquista humana

Cada estrofe acrescenta camadas simbólicas à figura de Magalhães, explorando o seu legado, a sua relação com o desconhecido e a sua imortalidade simbólica.

Temas Centrais

- Heroísmo e transcendência:

Magalhães é elevado a herói cósmico, cujo feito ultrapassa a sua existência mortal.

- Conquista do desconhecido:

A viagem de circum-navegação é vista como um ato de revelação universal.

- Sebastianismo e Quinto Império:

O poema inscreve-se na visão messiânica de Pessoa, onde Portugal tem uma missão espiritual no mundo.

- Mito e História:

Pessoa funde o mito (os Titãs) com a História (a expedição de Magalhães), criando uma narrativa simbólica universal.

Analise estrofe a estrofe

1. Primeira estrofe: O cenário mítico e o presságio

No vale clareia uma fogueira.

Uma dança sacode a terra inteira.

E sombras disformes e descompostas

Em clarões negros do vale vão

Subitamente pelas encostas,

Indo perder-se na escuridão.

Pessoa abre o poema com um cenário noturno e ritualístico, onde a fogueira ilumina um vale rodeado de sombras disformes, evocando um ambiente místico e ancestral. A dança que "sacode a terra inteira" sugere um ritual cósmico, quase telúrico, que liga o mundo natural ao espiritual.

A utilização da luz e da escuridão ("clareia uma fogueira" vs. "perder-se na escuridão") simboliza o confronto entre o conhecimento e o desconhecido, um tema central para o mito de Magalhães. A viagem do navegador representa justamente a travessia do espaço escuro e desconhecido (os mares nunca dantes navegados) para a revelação de novas realidades.

2. Segunda estrofe: Magalhães como um Titã moderno

De quem é a dança que a noite aterra?

São os Titãs, os filhos da Terra,

Que dançam da morte do marinheiro

Que quis cingir o materno vulto —

Cingi-lo, dos homens, o primeiro —,

Na praia ao longe por fim sepulto.

Aqui, Pessoa mitifica Fernão de Magalhães ao associá-lo aos Titãs, figuras da mitologia grega que simbolizam a rebeldia contra o poder divino e a tentativa de ultrapassar limites cósmicos. Assim, Magalhães é apresentado como um herói prometeico, alguém que ousou desafiar o "materno vulto" da Terra — a sua natureza finita e delimitada —, procurando "cingi-la", ou seja, circundá-la.

A morte do navegador nas Filipinas não representa fracasso, mas sim um sacrifício heroico. Ele foi "dos homens, o primeiro" a ter a ousadia de tentar tal feito. A ideia de ser "sepulto na praia ao longe" reforça a noção de um herói cujas ações transcendem a sua existência física, ecoando a tradição épica camoniana, onde o herói vive para além da morte pelo valor universal da sua obra.

3. Terceira estrofe: A transcendência e a imortalidade simbólica

Dançam, nem sabem que a alma ousada

Do morto ainda comanda a armada,

Pulso sem corpo ao leme a guiar

As naus no resto do fim do espaço:

Que até ausente soube cercar

A terra inteira com seu abraço.

Esta estrofe traz a grande revelação simbólica do poema: embora Magalhães tenha morrido, a força do seu espírito continua a comandar a expedição. A expressão "pulso sem corpo" sugere que o seu legado é mais poderoso do que a sua presença física.

Magalhães torna-se assim um símbolo transcendente, o espírito do descobridor português que, mesmo na morte, continua a guiar o destino. Este domínio espiritual sobre a matéria alude ao conceito do Quinto Império, defendido por Pessoa, em que Portugal lideraria uma era de supremacia espiritual e cultural sobre o mundo.

O "abraço" que circunda a Terra representa a primeira visão global do mundo, uma conquista que define a modernidade e o início da globalização.

4. Quarta estrofe: A ignorância das forças telúricas

Violou a Terra. Mas eles não

O sabem, e dançam na solidão;

E sombras disformes e descompostas,

Indo perder-se nos horizontes,

Galgam do vale pelas encostas

Dos mudos montes.

Na estrofe final, Pessoa afirma que Magalhães "violou a Terra", ou seja, desvendou o seu mistério. Esta "violação" tem um tom quase sagrado, pois ultrapassou um limite imposto pela natureza ao circundar o planeta.

Os Titãs, representando as forças primordiais e inconscientes da Terra, continuam a dançar, ignorantes da magnitude do feito humano. Isto sugere que a conquista espiritual e intelectual do homem ultrapassa as forças cegas da natureza.

A solidão em que dançam reforça a ideia de que o herói moderno, como Magalhães, se distingue exatamente por compreender e dominar o que a natureza e o mito desconhecem.

Conclusão

O poema "Fernão de Magalhães" em Mensagem não é apenas uma homenagem a um explorador. É uma reflexão filosófica e mística sobre o poder do espírito humano em ultrapassar os limites do mundo material.

Magalhães, na visão de Pessoa, representa o herói universal, aquele que se sacrifica para ampliar o horizonte do conhecimento e da experiência humana. Ao "cingir a Terra", torna-se imortal, pois realiza um feito que transcende o tempo e o espaço.

Assim, Pessoa perpetua a ideia de que a verdadeira glória não está apenas na conquista física, mas na dimensão espiritual e simbólica do ato de descobrir e compreender o mundo.